Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

As Manhãs da Comercial e a pontuação de Saramago

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Ontem fui ouvir Miguel Araújo e António Zambujo. Sobre o concerto direi pouco, porque gostos não se discutem e eu gostei muito.

No início do concerto, quando ainda todos nos estávamos a arrumar nas cadeiras, senti uma certa comoção à minha volta — todos olhavam para algumas cadeiras à minha direita. Antes de virar a cabeça, percebi que só podia ser uma grande estrela a chegar, tal era o nível de excitação. Pensei: ou bem que é a pop-star do momento, ou seja, o Prof. Marcelo — ou o Nuno Markl.

Era o Nuno Markl. É curioso ver como, com o mundo da televisão dividido em milhentos canais, gravações, netflixes e piratarias avulsas, a rádio abriga agora as estrelas mais consensuais — poucos vêem os mesmos programas de televisão, mas uma grande percentagem dos portugueses tem de ir para o trabalho de manhã e, por isso, Nuno Markl e seus companheiros são estrelas como poucas neste nosso apertado país. E ainda bem.

Bem, dei uma grande volta só para vos dizer que costumo ouvir o Homem Que Mordeu o Cão. Acho que eles, aquela equipa (haverá outras, mas são os que oiço), fazem algo importantíssimo: alegram aquelas horas de semáforos, fumos e irritações. Atrevo-me a pensar que já evitaram muitos desaguisados matinais (o que vale muito, mesmo descontando os acidentes provocados por risos incontroláveis).

Isto para enquadrar uma pequena irritação minha: acho intrigante como tanta gente diz sem pestanejar que José Saramago não usava pontos ou vírgulas. Claro que usava! Abram um livro dele. Um qualquer. Lá estão os pontos. Lá estão as vírgulas. Chiça!

Pois, hoje, Nuno Markl contou o caso de uma ouvinte que lhe mandou uma mensagem sem pontos nem vírgulas. Logo que ele acabou de contar o episódio, um dos colegas das Manhãs disse algo do género: «Ah, escreve à Saramago!» E todos se riram e disseram que sim. Ri-me na mesma (não resisto). Mas franzi os olhos enquanto me ria (que bonita cara devia eu ter naquele momento…).

Ora, todos eles que fazem parte das Manhãs da Comercial já devem ter lido um ou mais livros do Saramago. Tenho a certeza que sim. Então, porque repetem a ideia falsa?

Não sei. Imagino que estas ideias ganhem uma força própria, que cilindra a memória e o que sabemos. Repete-se porque sim, porque todos dizem, e pronto.

Não é que seja importante. É uma ideia falsa inócua. Mas mostra-nos como todos — mesmos os mais informados — andamos por aí com frases-feitas na ponta da língua que, no fundo, sabemos não serem verdadeiras.

Bem, mas isto agora não interessa nada. Deixem-me lá ir ouvir um podcast do Homem Que Mordeu o Cão para começar bem o fim-de-semana — ou até uma música do Zambujo e do Araújo, que fizerem um espectáculo de chorar por mais.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • Olá Marco.
    Não sei se há várias edições de Memorial do Convento. O que eu possuo não tem, em grande parte do livro, pontuação. Fiquei a pensar, por isso, que o “nobel” por ser mais que os demais, dava-se ao luxo de não seguir regras da língua pátria. Alguns acharam que era um inovador, outros que era um idiota. Outros ainda tapam o sol com uma peneira. Um abraço de um sincero admirador.

    • Obrigado, João, pelo comentário e pelo interesse no blogue. Saramago não seguia as regras no que toca ao diálogo, mas o mesmo acontece com muitíssimos outros escritores, por várias razões. Quanto às vírgulas e pontos, todos parágrafos do Memorial do Convento terminam com um ponto final e vírgulas há imensas. Só na primeira frase, conto quatro vírgulas (acabei de o fazer). Se puder verificar qual a edição exacta que leu, irei ver se há alguma diferença em relação à minha. Mais uma vez, obrigado! 🙂

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