Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Antigamente, os Portugueses escreviam melhor?

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De vez em quando, lá oiço alguém afirmar convicto: antigamente, os Portugueses escreviam muito melhor! E, claro, esta afirmação já vem confirmada e aprovada: «Só não vê quem não quer!»

Ora, quem tal afirma acaba por revelar uma tremenda ingenuidade.

Ingenuidade? Sim: no fundo, está a deixar-se levar por uma imagem idealizada do «português de antigamente».

Pergunto a quem está convencido que antigamente todos os portugueses escreviam bem e que, daí para cá, passaram a escrever mal: se aterrássemos num qualquer lugar do Portugal dos anos 40 ou 50, será que iríamos encontrar génios da escrita e gente que, sem dificuldade, alinhavaria textos impecáveis num qualquer caderno que lhes déssemos? E com as vírgulas todas no lugar? E com a velocidade com que hoje todos nós escrevemos nos facebooks e mensagens da nossa perdição?

Podia dar-se o caso de termos sorte. Mas se me dizem que seria fácil encontrar quem escrevesse bem numa população que não estava, na sua maioria, nas cidades e tinha profissões em que não era preciso escrever nada durante anos — é porque nunca pensaram assim tanto no país onde vivemos.

Ora, meus caros: no tal «antigamente» (seja lá isso o que for) a maior parte dos portugueses não escrevia. Ponto final. Haverá quem prefira assim: que poucos escrevam — assim sempre evitam ler textos com erros. Mas até isso é uma ingenuidade: olhamos para o passado e, de todos os textos de quem escrevia (que eram poucos), só nos lembramos do que era bom, daqueles textos que sobreviveram ao turbilhão do tempo.

É um erro de análise fácil de explicar: como a memória não é perfeita, lembramo-nos mais facilmente daquilo de que gostámos do passado — e acabamos por idealizá-lo. Depois, claro, esquecemo-nos de compensar a fortíssima tendência que os nossos cérebros têm para confirmar aquilo em que já acreditam. É por isso que os ingénuos da língua perpetuam esse optimismo do passado, julgando-o sinal de forte lucidez, e ainda sentem um certo desespero perante que não acredita neles. Pois se é tão óbvio!

Curiosamente, estes ingénuos acham que quem não partilha essa visão cor-de-rosa do passado é porque idealiza o presente — e desatam a chamar de «ingénuos» e «optimistas» quem estuda mais a fundo a língua e os seus mecanismos seculares e, por isso mesmo, não cai nessa patranha do «antigamente é que era bom».

Pois, olhem, deixem-me que vos diga: em relação ao presente, só os tolos são optimistas. Há tanto que nos separa do melhor dos mundos… Mas o optimismo em relação ao passado é mais matreiro, porque a nostalgia embriaga-nos e somos facilmente enganados pela memória, que é uma peneira que, do passado, nos dá apenas os diamantes. A lama, essa, fica escondida na aridez dos números e de alguns livros de História.

Sejamos exigentes com o presente, claro! Sejamos ainda cautelosos quanto ao futuro. Mas não sejamos ingénuos quanto ao passado: há 50 anos, muita gente não sabia escrever, muitos dos que sabiam escreviam mal (mas como não precisavam de escrever no dia-a-dia, não se via), milhões de portugueses passavam a vida sem pegar num livro, o português-padrão era desconhecido de tantas e tantas famílias — e, já agora, a língua mudava como hoje muda e os jovens também tinham os seus códigos e as suas modas.

Sim, o presente desespera-nos: há muito a fazer. Mas não ser ingénuo quanto ao português de agora não implica que tenhamos de ser ingénuos quanto ao português de antigamente. Porque essa ilusão não ajuda nada a melhorar a vida dos falantes de português.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • Antigamente é que era bom. No meu tempo …(alto lá que eu ainda não morri. Este tempo também é meu.)
    Antigamente é que se aprendia na escola. A 4ª classe era uma verdadeira licenciatura. (Ainda hoje estou por saber para que quis eu aprender as linhas dos caminhos de ferro. Nem sequer melhorou a minha memória.)
    Antigamente é que nós sabíamos brincar (divirto-me muito com as brincadeiras de agora da minha neta).
    Daqui as uns anos a minha neta se calhar está a fazer este mesmo tipo de afirmações (espero que não). Isso do antigamente é um mito.

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