Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Cinco expressões deliciosas da língua portuguesa

O meu irmão Diogo já me avisou que eu uso demasiado a palavra «delicioso». Quando ele me disse isso, não acreditei. Mas, depois, fiz uma procura no blogue e saíram-me três páginas de artigos onde uso a palavra. Raios.

Bem, hoje lembrei-me novamente da palavra «delicioso» ao ouvir uma alemã a falar português.

Deixem-me lá contar: hoje estive na conferência  «30 anos de Português na UE», no Museu do Oriente, organizada pelas instituições europeias.

Pois, a certa altura uma funcionária alemã (cujo nome não consegui registar a tempo [um leitor informou-me, nos comentários abaixo, que se chama Ulrike Hub]) decidiu contar as suas aventuras na língua portuguesa, o que muito divertiu o público. Acabou por dizer várias expressões portuguesas que acha engraçadíssimas — e que nós quase nem notamos.

Aqui ficam cinco dessas expressões, que rabisquei furioso enquanto as ouvia (muitas passaram-me):

  1. «Pequenos nadas». Sim, à funcionária alemã esta expressão faz-lhe cócegas divertidas. Pensem bem como nem notamos que os «nadas» não podem ser nem pequenos nem grandes — são nadas. E a vida, claro, é feita desses pequenos nadas… Uma expressão ilógica? Ah, sim, mas deliciosa. No fundo, é um dos pequenos nadas de que se faz o irresistível charme da língua portuguesa.
  2.  «Barriga das pernas». Claro que a nós não parece, mas é de facto uma expressão curiosa. Imagino que um alemão, quando encontra esta expressão pela primeira vez, pense num umbigo no meio das pernas. Ou mesmo numa pequena criança a nascer na barriga da perna dum qualquer deus grego (que tinham tendência para essas maluqueiras).
  3. «Céu da boca». É tão normal, mas tão normal que não percebemos quão malandra pode ser esta expressão portuguesa: pois quem não encontrou já o céu num bom beijo? E andamos nós com esta poesia toda nos lábios sem lhe dar valor. Sim, quem fala português tem um céu dentro da boca. Uma alemã arregala os olhos, claro está. E aproveita os segredos desta língua, pois então.
  4. «Beijinhos grandes». A alemã arrancou gargalhadas de todos os que lá estavam ao perguntar se haverá coisa mais estrambólica do que beijinhos grandes… E, de facto, ou bem que os beijos são -inhos ou bem que são grandes. Mas que importa? São beijinhos, chiça. E grandes, ainda por cima. Quem não quiser que vire a cara.
  5. «Fuz». Disse-nos a alemã que se nós temos «faz», «fez», «fiz», «foz» — só temos de nos esforçar um pouco para ter um «fuz». E tem muita razão, sim senhora. Quem de entre nós se atreverá a dar um significado ao nosso «fuz»?

É no que dá pôr-me a ouvir a nossa língua pela mente duma alemã. Tudo se torna menos familiar, menos habitual e por fim — como acontece quando repetimos uma palavra comum muitas vezes — estranho e delicioso. Por momentos, ouvimos essa palavra como se fosse a primeira vez.

Será também aí que reside um dos grandes prazeres de aprender línguas: a estranheza da língua dos outros é sempre imensa — e há momentos em que até a nossa língua nos aparece como uma estranha invenção que não é de ninguém em particular, mas de todos nós — até duma alemã que a aprende em adulto — e que vamos desfiando pelos séculos, pela boca e pela escrita.

E, já agora, feliz Dia Europeu das Línguas!

26 de Setembro de 2016

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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29 comentários
  • Não é por nada, mas apetece-me dizer : DELICIOSO !
    Apenas…
    Obrigada por este saboroso Post!

    • “Não é por nada”, também gosto.
      Apetece-me sempre perguntar: É então porquê ? 😉

  • Baco era seu filho e da mortal Sémele. A jovem durante a gravidez insistiu que queria ver o pai do seu filho, em toda a glória. Júpiter tentou dissuadi-la, mas sem êxito. Quando o rei dos deuses se apresentou abertamente à sua amante, esta caiu fulminada. Júpiter tomou então o feto e colocou-o na sua barriga da perna, onde terminou a gestação.

  • Fuz – O efeito multicor da luz das estrelas quando passa pela nossa atmosfera, numa noite estrelado no meio do nada.

    Engraçado nunca teres notado na quantidade de vezes que usas a palavra haha

  • Delicioso…ledicia…ledo…
    Levousa fremosa levousa louzana…leda dos amores dos amores leda…

  • A senhora Hub tem razao! Nao há dúvida que certos termos uilizados, não fazem grande sentido. Se bem que, só se dá por ela quando se procura fazer uma tradução 1/1 o que nem sempre é possivel. Termos destes também existem na língua Alemã! Seria bom saber de que zona a Senhora Hub é, porque por exemplo no Sul da Alemanha (parte da Württemberger e da Baviera) tudo que seja abaixo do joelho é pé. Mas, há mais…

  • Só um pequeníssimo nada (!!!): Deliciosamente delicioso este post! Há quanto tempo não lia algo que para além de chamar a atenção, o faz com alegria e humor.
    Obrigada e continue a ser “delicioso”

  • Muitas vezes só tomamos consciência da nossa língua quando ouvimos na boca dos outros. Também é verdade que, por vezes, esses outros fazem que a nossa língua seja mais deliciosa quando decidem utilizar as nossas palavras por acha-las mais harminiosas ou com uma melhor significação.
    Uma amiga santaderina, castelhano-parlante, decidiu apropiar o meu (nosso) tolo para expressar como fica quando alguém está a falar e falar e falar…. “Me pone la cabeza tola” diz ela toda chei de ração. É assim como eu me apercebo de que as palabras não só têm significado conotativo, mas também denotativo.
    Gostei imenso do escrito.

  • E agora que releio vejo um gravissimo erro, quase imperdoável. Não está ela “cheia de ração”, mas sim de razão.
    Posso dizer que foi o corretor ou mesmo que as gralhas ortográficas são para aqueles escrevem. Qualquer caso, fique aqui a rectificação.

    • Não tem importãncia! Acho que conseguimos perceber o que queria dizer, e é isso que interessa.

  • Um grande amigo, marroquino de nascimento e brasileiro de coração, também já comentou mais de uma vez sobre os nossos “beijinhos grandes”. Acontece que o diminutivo em Português já deixou de ser apenas uma categoria gramatical, adentrou para outras categorias e começa a fazer parte de alguns vocábulos que têm essa forma, mas deixaram de ser diminutivos, sao um novo vocábulo, usando os termos do autor do blog, que expressa essa característica deliciosa da nossa língua. Abraço e obrigada pelos textos úteis e divertidos.

  • A Sra . Hub deveria conhecer um parente meu que, ao não encontrar algo que procura, desata (outra palavra que ela talvez não entenda neste contexto) a perguntar aos da casa:não viram uma coisa que eu trouxe? Pergunta o outro: onde a guardaste? Responde o primeiro: em cima da coisa. A nossa língua é tramada, mas é riquissima. 5* para o seu texto.

  • Caro Marco,

    À panturrilha chama-se, em Portugal, apenas barriga das pernas ou também batata das pernas? Gostaria de saber se batata das pernas se usa apenas no Brasil ou se também é corrente no além-mar.

  • Um amigo meu, alemão idoso, culto e viajado, diz que, como temos o hábito de “comer” sílabas, a nossa língua tem, para um estrangeiro, um não sei quê de língua de piratas.
    Diz, também, que o Português deve ser a única língua onde “Pois sim” é igual a “Pois não” (“Importa-se de fechar a porta?” “Pois não”/Pois sim”) E remata: tanto faz “dar-lhe na cabeça ou na cabeça dar-lhe”.
    Um famoso filólogo alemão e grande poliglota, cujo nome, de momento, não me ocorre, disse que a expressão mais bonita que alguma vez ouviu foi “minha linda menina”.
    Cumprimentos.

  • Pode contar à sua amiga alemã que Júpiter gerou um filho na barriga da perna: “Baco era seu filho e da mortal Sémele. A jovem durante a gravidez insistiu que queria ver o pai do seu filho, em toda a glória. Júpiter tentou dissuadi-la, mas sem êxito. Quando o rei dos deuses se apresentou abertamente à sua amante, esta caiu fulminada. Júpiter tomou então o feto e colocou-o na sua barriga da perna, onde terminou a gestação.”ver “Júpiter (mitologia)” na WIKIPÉDIA

  • Achei o texto delicioso.Aqui no Brasil usamos “delicioso(a)” pra qualquer coisa, mas acho que só em Portugal existe “coiso” que eu também emprego quando viajo por lá. Acho muito giro! Abraços

  • Quando gosta de algo o português gosta de simbolizar esse pequeno prazer usando “inho” ou “inha” no final de certas palavras… Portanto, como portuguesa que sou e devido à hora que li esta informação desejo a todos uma boa noitinha.

  • Guardo e me aproprio de toda informação que vem de você. Adoro seus textos. Nossa língua é deliciosa.

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