Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Sete medos de quem escreve em português

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Há umas semanas, um amigo do Facebook deu-me um toque: «olha que andas a exagerar nessa obsessão com os erros falsos». Sim, é verdade. Falo muito desse assunto por aqui. Mas não pensem que ando o dia todo a pensar nisso. Há muito para fazer e poucas horas no dia.

Agora, é verdade: quando escrevo no blogue (uns quantos minutos por dia), penso muito neste assunto. Mas, vá, deixem-me lá justificar a obsessão: parece-me a mim que as hipercorrecções, principalmente quando são feitas de forma desabrida e sem margem para dúvidas ou discussões, são dos poucos erros de português que prejudicam todos os falantes da língua — os erros normais quase só prejudicam quem os dá.

Ou seja, corrigir alguém sem razão e de forma mal-educada parece-me a mim bem pior do que dar um erro ortográfico. Os erros falsos acabam por limitar a língua e estragá-la para todos.

Ainda há tempos, falei por aqui dum caso concreto: a fúria absurda contra o uso duma palavra mais popular por parte dum jornalista. O jornal acabou por mudar a notícia, tirando-lhe todo o sal. E, desconfio, aquele jornalista vai começar a escrever com mais insegurança, arriscando menos, escrevendo pior. O jornal vai pensar duas vezes antes de deixar passar uma notícia que use de forma inteligente e bem-humorada vários registos da língua.

Agora, o que me enerva é que há quem goste disto! Há quem tente espicaçar o medo nos falantes, por razões que me escapam. Normalmente, quem acicata o medo linguístico envolve o seu discurso num moralismo desastrado, em que tudo é pecado e tudo é prova da decadência dos costumes (neste caso, da língua). Aliás, parece-me que os discursos sobre a língua são dos últimos refúgios respeitáveis desse moralismo bacoco que levava muitos a decretar a música e o simples divertimento como prova da decadência e como razão (por exemplo) para o terramoto de 1755. Deus encontrava-nos a ouvir música e a rir? Dá-nos com um terramoto na tromba! Hoje em dia dizemos «terramoto» em vez de «terremoto»? Lá vem o fim do mundo e a decadência da língua e a desgraça universal…

Pois, mas fora desses casos extremos dos moralistas da língua, muitos dos falsos erros surgem da insegurança que muitos sentem e da genuína preocupação em não errar. Surgem dos medos que todos sentimos. Ou seja, todos podemos cair em hipercorrecções porque todos sentimos, mais cedo ou mais tarde, certas inseguranças. Por isso mesmo, aconselha-se cautela. Antes de atirar pedras, tenhamos um pouco de bom-senso, usemos a dúvida, sempre tão inteligente.

O que gostava de fazer com este textinho (sim, estou a ser irónico com o «inho») é identificar alguns dos medos que os falantes da língua sentem, perceber como nos levam ao erro e, assim, impedir o empobrecimento da língua que a visão moralista da língua quase sempre implica.

Aqui estão, assim, sete dos medos de quem escreve em português. São medos que encontro em muitos das queixas desvairadas pelo Facebook fora e em muitas obras catastrofistas, daquelas que acham que a língua está moribunda:

1. O medo da ambiguidade

Há frases ambíguas, claro. A ambiguidade pode ser um grande erro! Mas a ambiguidade não existe numa regra ou palavra em abstracto, mas em cada frase em particular.

Dou um exemplo. Ainda há uns dias, alguém me dizia que «a gente» como sinónimo de «nós» é errado porque pode ser ambíguo: podemos confundir a expressão com «a gente que está ali ao fundo».

Ora, não consigo lembrar-me de um único caso em que alguém me tenha dito algo como «a gente vai contigo» e eu não tenha percebido o significado naquele momento. Ainda há dias fui buscar o meu filho à escola e disse: «a gente vai ter com a mãe». Fui ambíguo? Não. Dei cabo da língua? Não me parece…

Também já ouvi alguém insistir nisto: dizer «não há nada» deve ser considerado erro porque, em certos textos filosóficos sobre lógica, pode dar origem a ambiguidades. Tudo bem. Mas, se assim for, não se use tal construção nesses textos!

Se quisermos mesmo eliminar todas as palavras ou construções que permitem ambiguidades, vamos ter de rebentar com a língua quase toda.

Por exemplo, a palavra «seu» dá origem a ambiguidades: se eu disser «o João discutiu com a Maria o seu livro» estou a falar do livro do João ou da Maria? A frase é ambígua e, por isso, se não quisermos manter a ambiguidade, devemos mudá-la. Mas daí a tentar proibir a palavra «seu» vai uma grande distância… Muito grande mesmo. É a mesma distância que acho que não devemos percorrer no caso de «não há nada», «a gente», «espaço de tempo», etc. — se as expressões forem ambíguas numa determinada frase, temos de refazer essa frase. Mas não temos de eliminar as expressões da língua, com medo de não sabermos detectar ambiguidades na vida real…

Por isso, a todos os que querem proteger as palavras quando são atacadas sem razão, digo-vos: quando alguém achar que uma construção ou palavra está errada porque pode dar origem a ambiguidades no abstracto, perguntem-lhe se também quer eliminar a palavra «seu».

2. O medo da falta de lógica

A falta de lógica… É a desculpa de tantos inventores de erros. «Espaço de tempo» não é lógico. «Saudades tuas» não é lógico. «Não há nada» não é lógico. Até já ouvi, há pouco tempo, dizer que «isso não é verdade» não é lógico, porque devíamos usar «isso não é verdadeiro». E são apenas exemplos… Com esta desculpa da lógica, qualquer pessoa inventa erros de português e desata para aí a corrigir os outros.

Diga-se, já agora, que esta desculpa vem em dois sabores: ou a expressão não é lógica porque parece contrariar a lógica em si («não há nada» parece ser uma dupla negação — embora não o seja) ou não é lógica porque parece redundante, parece demasiado complexa, parece não respeitar «a lógica da língua» — a língua, claro, não será bem o português, mas a língua perfeita e muito lógica que o inquisidor da língua tem na cabeça.

Se alguém quiser mesmo ir por aí, repare: qual é a lógica de termos três conjugações (-ar, -er, -ir)? E verbos irregulares? E verbos defectivos, que só chateiam? Bolas! A língua é estranha e a dar para o caótica. A língua não foi criada de raiz, não é feita por comissões de especialistas, é criada de forma natural e imprevisível, acabando por ser um sistema muito complexo, difícil de arrumar em explicações fáceis. Não sejamos simplistas nisto da língua…

Pensando no «não há nenhum», que alguns acusam de ser ilógico. Nada existe na língua que obrigue a fazer cálculos lógicos de partículas negativas em que duas partículas negativas se anulam uma à outra. Não é assim que a língua funciona! Quer isto dizer que pensamos mal? Não: a sintaxe complexa da língua pode e deve ser usada para expressar um pensamento que se quer lógico e claro. Agora, não podemos é inventar uma língua que não existe.

Há muitos exemplos em que os arrumadores de regras querem impor à força uma lógica artificial à língua. Uns não gostam de «o último livro do autor», porque parece que o autor já morreu (ou será que, aqui, o medo é o da ambiguidade?). Outros não concordam com o «espaço de tempo» porque não é lógico misturar os dois termos (será que também recusam «não é possível voltar atrás no tempo»?).

Ocupem-se antes de duas coisas: olhar com respeito para a língua e tentar pensar de forma cada vez mais lógica. Assim, perceberão quão errado é confundir lógica do pensamento com a gramática do português.

3. O medo do português dos outros

Desculpem lá, mas quem fica horrorizado com formas populares da língua só pode estar a querer dizer que tem medo da maneira como certas pessoas falam, coitadinhas. Sim, existem hábitos diferentes em sítios diferentes do país, em classes sociais diferentes, em idades diferentes, e por aí fora. Todas estas formas têm algumas diferenças e convém aceitá-las, mesmo que a norma-padrão, em muitos contextos, tenha de ter a primazia.

Isto significa que não devemos arrancar cabelos nem obrigar a um pedido de desculpas quando um jornal usa, esporadicamente, um verbo do registo popular.

Mas, depois, vem o medo de que isto seja abrir a porta aos bárbaros! Ainda há semanas, na discussão sobre o verbo «deslargar», alguém dizia que se aceitamos o verbo «deslargar» temos de aceitar tudo!

Ora, bolas: não. «Dislarga» não está correcto. «Pislarga» também não existe. «Zaslarga» idem. Ou seja: a língua tem palavras, tem regras — são é um pouco mais complexas do que algumas pessoas pensam.

Depois vem ainda o medo: daqui a pouco, estamos a dizer «prontos» e «portantos» e «fizestes». Não, pá! Ninguém anda a obrigar ninguém a dizer seja o que for. Quanto a essas palavras perigosas, até podem ser aceitáveis numa peça de teatro, quando estamos a caracterizar uma personagem, mostrando-a num contexto muito informal. Fora disso, dificilmente serão aceitáveis numa publicação: e a verdade é que aparecem em textos informais, mas muito raramente em textos revistos e publicados.

Outra justificação que ouvi para a recusa dum verbo do registo popular foi: «Se usamos palavras informais nos jornais, estamos a dizer às pessoas que são aceitáveis em qualquer situação.»

Que maçada, isto. Não, as pessoas não são burras. Até um analfabeto sabe que se fala de forma diferente num tribunal ou numa festa. Todos percebem isto, menos aqueles que querem uma língua igual em todas as situações. Os jornais são um caso curioso de exposição a vários registos. O registo popular também tem lá lugar, de vez em quando.

Sim, eu sei, isto desperta emoções fortes. As recordações das reguadas da infância… As regras que aprendemos (ou que julgamos ter aprendido)… A língua que nos incutiram é sempre vista como melhor que as outras formas de falar a mesma língua. Se a minha mãe me diz que «o comer» é de gente baixa, tudo o resto não interessa!

Ora, tenham lá calma. Ninguém é obrigado a usar «deslargar». Ninguém vai começar a exigir-vos que digam «o comer». Mas são palavras que existem, que são usadas por pessoas de bem por esse país fora. Depois convém aprender que há situações em que são mal vistas. Mas as pessoas aprendem. Agora, se continuam a gritar, qualquer dia ninguém pára «o comer», dito com alguma vontade de contrariar…

4. O medo da redundância

As línguas, como todos os sistemas naturais, estão cheias de redundâncias. É como os dois rins, os dois pulmões, os dois testículos ou ovários: temos muita coisa a duplicar. Até o cérebro sobrevive a alguns acidentes em que desaparece uma parte (mas não convém abusar).

Somos organismos muito redundantes e a língua é, da mesma forma, muito redundante. A natureza sabe que o custo da redundância é o preço a pagar pela sobrevivência durante mais tempo. Nós podemos viver só com um rim, só com pulmão, só com um testículo, só com uma parte do cérebro, mas não é a mesma coisa! É mais perigoso; é pior, enfim.

Agora, reparem os que odeiam redundâncias: «sim, vou eu!» Ai, redundância. «Ele vai!» Mais redundância: um pronome e um verbo na forma que só pode ser usada com esse pronome. Para que está lá o pronome? Aliás, até palavras como «comigo» e «connosco» são redundantes. «Migo» e «nosco» faziam o trabalho com menos letras.

Aliás, se virem bem, podemos até rtirar algmas ltras e contnumos a comprendr o q escrvemos. A informação dessas letras parece ser redundante.

Acham mesmo que podemos criar uma língua optimizada, sem redundâncias, limpinha, ali no osso? Pensem lá melhor! Sim, pela simples razão de que nem sempre falamos nas melhores condições, a língua desdobra-se em palavras ou sílabas a mais. Depois, porque às vezes queremos sublinhar alguma coisa, aparecem mais palavras e mais sílabas. Por isso, acabamos por dizer: «dá-me isso a mim!». Dizemos até «subir para cima da mesa». Ou (vá, tenham lá ataques de coração): «há três anos atrás».

Os bombeiros da língua já ligaram as buzinas. É erro! É erro!

Sim, é erro porque às vezes estes medos vencem mesmo. «Há x anos atrás» é uma forma a evitar, mas apenas por causa desse desprezo nascido do medo, desprezo esse que não passa duma moda aleatória que pegou, perante essa outra moda ou tendência que é pôr o «atrás» à frente dos anos (ou dos meses, das horas, dos minutos…).

Podia ser moda, por exemplo, dizer que os pronomes pessoais antes do verbo são sempre redundantes. Felizmente, ainda ninguém se lembrou dessa.

Já agora, reparem na diferença. Aqui vão dois erros daqueles a sério:

  • (1) «*à três anos atrás»;
  • (2) «*há três anos em trás».

Quanto ao (1), a ortografia do português é, ela sim, bastante sistemática. Ninguém pode escrever «*à três anos atrás» e afirmar que não é erro.

Já quanto ao exemplo (2), o português não funciona assim: se um estrangeiro dissesse isto, estaria a dar um erro; se um português, de repente, se lembrasse de dizer isto, também estaria a incorrer num erro. A não ser que essa construção começasse a ser usada de forma sistemática por grande parte da população… Sim, amigos, o uso dos falantes do português é o grande critério. Que a norma deve andar devagar, ninguém duvida. E devagar ela anda — só não está é parada.

Como é fácil de perceber pelo número de vezes que ouvimos a frase da boca dos melhores falantes, mesmo quando se esforçam por evitá-la, «há três anos atrás» é uma construção que, muito provavelmente, veio para ficar. É redundante? Sim. Mas a redundância, só por si, não é erro: é feitio. Este «atrás» que irrita tanta gente já faz parte da língua portuguesa, vá-se lá saber porquê. Ainda não faz parte da norma? Sim, admito que ainda não. Mas não me custa a acreditar que, daqui a umas décadas, ninguém levantará o sobrolho perante tal redundância, tal como hoje não levantamos sobrolho algum perante tantas e tão boas redundâncias da língua. Enfim, não posso ter a certeza: mas não me custa acreditar que assim será.

(Até me arrisco a dizer isto, que não passa duma teoria minha: a língua cria estas redundâncias em casos, como o «há», em que a rapidez da fala quase faz desaparecer a palavra; vai daí, temos necessidade de pôr lá mais uns sons para compensar. Acham que isto não é razão para gastar mais umas décimas de segundo numa frase? Então, para quê dois rins?)

Andar atrás de redundâncias como quem prende criminosos é um desporto um pouco estranho. É uma perda de tempo. Passem mais tempo a ler, é o que vos digo.

E agora, o aviso da praxe (é obrigatório por lei): apesar do que vos disse acima, não é aconselhável usar «há X anos atrás» junto de estranhos. Pode provocar ataques cardíacos em quem sofre da língua.

5. O medo do assado

Este medo é fácil de explicar: há quem tenha muito medo de quem diz que podemos dizer assim, mas também assado. Acham que a língua de deve limitar ao mínimo indispensável. Se duas construções querem dizer a mesma coisa, há quem ache que só uma pode estar correcta. Posso dizer «Isso é verdade?». Sim, posso. Posso dizer «Isso é verdadeiro?» Sim, posso. Posso dizer «Quero um copo com água!»? Sim, claro. Posso dizer «Queria um copo de água!»? Sim, também. (Eu cá até prefiro esta segunda, como sabem.)

Coitada da língua se só pudesse ser assim ou assado. Coitados dos escritores! Coitados de todos nós! Não, felizmente, a língua tem muitos assins, muitos assados, muitos cozidos. Não faz mal nenhum.

Há preferências, há formas de falar típicas de cada pessoa, há expressões mais informais, menos informais, há tudo e o seu contrário. Não há muito a fazer quanto a isto: a língua dá-nos mais do que precisamos. E ainda bem.

6. O medo das palavras mutantes

Há quem tenha medo das palavras que mudam. Para estas pessoas, uma palavra tem de ter uma forma e um significado eternos — e quanto mais simples melhor.

Ora, o raio das malucas mudam imenso, vejam lá.

Felizmente, mudam de forma muito mais lenta nos registos formais. E é bom que certos aspectos se mantenham estáveis (como a ortografia). Mas a língua muda. Todas as línguas mudam. Esse facto da vida não nos torna incapazes de ler textos mais antigos (afinal, naturalmente, a língua escrita muda de forma mais lenta). Mas lá que muda, muda.

Sim, uma palavra começa a querer dizer uma coisa e acaba a querer dizer outra. «Parvo» era «pequeno» em latim, não era?

Sim, às vezes uma consoante que vem do passado desaparece. «Neptuno» torna-se, no Brasil, «Netuno». Que horror!

Sim, «puxar», na expressão «puxar o autoclismo» quer hoje dizer «carregar no autoclismo». Raisparta a língua!

Sim, «tirar impressões digitais» não quer dizer tirar alguma coisa a alguém… «Fazer a barba» não implica fazer alguma coisa. E, no entanto, todos percebemos estas úteis expressões da língua.

É assim tão difícil perceber que uma palavra pode ter significados múltiplos? Que as palavras são mais complexas do que parecem? Que mudam com o tempo e com as nossas necessidades — e com as modas, e às vezes só porque sim?

Pois é: as palavras antigas às vezes apanham-se com outro significado na boca dos mais novos. Sim, meus amigos, «brutal» é uma coisa em textos formais ou nos lábios dos mais velhos e é outra, completamente diferente, na boca dos mais novos. Não se preocupem, que ninguém acha que uma notícia sobre um «assassinato brutal» é sobre um assassinato muito bom. E quem usa a palavra «brutal» no seu novo sentido até vai usar o outro sentido no momento certo, se não for demasiado tonto. Confiem mais nas cabecinhas das outras pessoas, se faz favor.

Podem estrebuchar, dizer que a língua devia mudar mais lentamente, mas ela move-se como quer. A língua, como a Terra, não é como imaginam aqueles que andam cheios de medo. É um fenómeno natural, que podemos domar e usar de forma consciente no nosso uso individual, mas não podemos controlar no seu todo colectivo, que se vai mexendo como os continentes. E ainda bem, digo-vos eu. Que isso de línguas controladinhas não está com nada…

(Sim, a linguagem humana é um fenómeno natural. Certas elaborações das línguas são mais culturais do que naturais, mas seja como for estamos num terreno onde a fronteira é difícil de definir. O que ninguém deve achar é que os falantes andam a usar uma língua criada, propositadamente, por algum comité de criação de línguas. Não: elas surgem e mudam naturalmente.)

7. O medo do fim do mundo

Ah, o fim da civilização na boca dos portugueses!

Há quem grite: se continuamos assim, qualquer dia o português não tem regras! E gritam isto há séculos.

E, no entanto, a língua lá continua com regras, bem complexas.

Aliás, mesmo que amanhã os dicionários desaparecem todos e as gramáticas com eles, teríamos muito mais dificuldade em ler e em definir o que é a norma-padrão (e por isso não desejo nem por sombras tal hecatombe), mas a língua continuaria cheia de regras, excepções, lentos movimentos de mudança, dialectos, palavras com significados subtis e tudo o mais.

Os dicionários, as gramáticas — são tudo formas de estudar a língua e fotografá-la o melhor possível, com uma ou outra tentativa de impor esta ou aquela regras de etiqueta (que os falantes seguem ou não por motivos quase insondáveis). Mas não são os dicionários e as gramáticas que criam a língua. (Talvez ajudem a estabilizá-la — nos dias bons.)

Todas as línguas, mesmo as línguas de povos escondidos em obscuras florestas, têm regras — e têm regras complexíssimas. As línguas dos países com uma cultura mais complexa não são melhores ou mais completas: têm, quanto muito, mais vocabulário porque são usadas para falar de mais assuntos. Mas as regras gramaticais não são mais subtis ou mais complexas. E, reparem: as regras nos livros de gramática que temos nas estantes são, quase sempre, simplificações, tentativas de apanhar essa borboleta gigante que é a língua. Mas ela raramente se deixa apanhar por completo…

A língua, agora sem medo

Perante isto, o que fazer?

Quem tem medo da ambiguidade só tem uma solução: reler o que escreve e tentar encontrar ambiguidades. Sim, há construções mais arriscadas. A palavra «seu», por exemplo. Mas não tentemos proibir palavras ou expressões por causa de ambiguidades imaginárias. (Outro conselho: dêem algum valor à ambiguidade. Às vezes, até dá jeito.)

Quem tem medo de ser pouco lógico também só tem uma solução: esforçar-se por pensar cada vez melhor. Proibir esta ou aquela construção desse bicho muito natural e muito caótico que é a língua não nos ajuda em nada nessa tarefa difícil que é pensar bem. Sim, é preciso olhar para o uso concreto da língua, para as frases que temos à frente, para tentar perceber o pensamento que às vezes se esconde lá por trás — incluindo os erros que surgem por causa duma sintaxe mal pensada. Mas olhar para a língua enquanto conjunto de regras e hábitos e tentar refazer essas regras e hábitos para nos pôr a todos a pensar melhor não serve de muito. Diria mesmo: não serve para nada e tira-nos tempo para pensar melhor.

Quem tem medo do português dos outros devia olhar para isto: todas as línguas são faladas por muitas pessoas. Há pessoas diferentes, há profissões diferentes, há classes sociais diferentes, há regiões diferentes, há hábitos diferentes. Gostavam mesmo de viver num país onde todos falassem da mesma maneira? Que usassem as mesmas expressões? Pensem se gostariam que todos usassem a mesma roupa… Claro que temos regras de etiqueta e às vezes há falhas, porque há muitos contactos entre pessoas diferentes (é verdade que houve tempos em que a sociedade estava mais separada em compartimentos simples…). Ora, mesmo com falhas e desentendimentos, um pouco de tolerância nunca fez mal a ninguém — e, já agora, se não for pedir muito, alguma boa-vontade e genuína curiosidade em saber mais sobre as outras pessoas. Ah, e não se esqueçam que essas outras maneiras de falar a língua que é de todos são essenciais à boa literatura. Já é uma boa razão para morder a língua antes de criticar «o comer» dos outros.

Quem tem medo das redundâncias talvez devesse perder algum tempo a ler o livro Antifragility, de Nassim Nicholas Taleb. Verão como as redundâncias, em tudo o que é natural e orgânico (como as línguas), são mais do que toleráveis: são essenciais e uma prova da robustez desses sistemas. Mais do que robustez: antifragilidade! Mas para saberem o que é isso convém ler o livro (já agora, aviso-vos que o autor às vezes gosta de ser irritante; mas tem razão em muito do que diz).

Quem tem medo das alternativas na língua deixe-se disso. Certamente não quer ficar com uma língua mais pobre, pois não?

Quem tem medo da mudança… Bem, proponho que continue a usar a língua tal como existia nesses tempos áureos que nunca houve.

Quem tem medo do fim do mundo descanse. Respire fundo. O mundo ainda não acabou. Amanhã há mais. Mas, lembremo-nos todos: não acabou para todos, mas todos os dias acaba para algumas pessoas. Querem mesmo perder tempo a matar expressões da língua? Não é melhor usá-la para falar e para viver?

Não temos de ter tanto medo. Quem se deixa levar por estes medos fáceis presta um mau serviço à língua e aos falantes da língua. Porque é preciso usar essa mesma língua sem andar com medo de a usar, é preciso ginasticá-la, ganhar bom ouvido. Ler muito. Treinar. Ler mais. Escrever. Ler diferentes textos, diferentes registos. Falar. Usar a língua de forma criativa. Explicar o que é preciso. Escrever o melhor possível. Não desistir. Perder o medo.

Sei que já disse isto, mas é que não há mesmo volta a dar.

Coragem!

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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10 comentários
  • “O que ninguém deve achar é que os falantes andam a usar uma língua criada, propositadamente, por algum comité de criação de línguas. Não: elas surgem e mudam naturalmente.”
    Nem sempre, meu caro Marco.
    Esta eu acredito q seja criação d artífices, feita pra corrigir uma possível ambiguidade: Estória/ História.
    Acho q ninguém se enganaria perante um conto estórico ou um fato histórico.
    Muleta desnecessária, né não?!!

  • Uma questão me assalta a mente (também poderia ou deveria escrever “uma questão assalta-me a mente”, mas não me apetece…

    Mas isto é exclusivo do Português de Portugal?
    Não acontecerá o mesmo às outra linguas ou até mesmo ao Português do Brasil?

    Não será às tantas uma luta tua estilo “D Quixote contra os moinhos de vento”?

    • Não é exclusivo do português. O inglês andou a sofrer estes ataques puristas nas últimas décadas. Mas a verdade é que uma visão mais descomplexada da língua também pode fazer o seu caminho. Mesmo no inglês, hoje em dia já é mais difícil fazer passar este moralismo linguístico de que falo. Talvez seja uma luta sem grande fim, mas pronto, cada um com os seus moinhos 🙂

  • Sim, anda por aí muita gente a querer “uniformizar” a língua, a tentar colocar erros e restrições linguísticas em tudo e mais alguma coisa. Não há coisa mais patética que portugueses que não conhecem minimamente a literatura e o falar do português-brasileiro e vice-versa. E quando estas criaturas resolvem comparar e disputar o pódio do que é suposto ser bom português, não há paciência que resista a tanta alarvidade. Pior ainda, aquele género de pessoa que não consegue fazer uma frase simples sem dar meia-dúzia de erros e perante uma palavra que faça parte do vocabulário regional, desata aos berros a clamar que não é aquele nome, que é outro, porque simplesmente desconhece o termo.

  • ADOREI o artigo!

    Sempre considerei as listagens de “erros” (do português mas também do espanhol, pois eu som galego e estamos aí no meio) como uma espécie de lembrancinhas do Facebook. Como aqueles “toreros” de plástico para pôr acima dos aparelhos de televisão antigos, ou as gaitas galegas nas que os farrapos do roncão pintam uma bandeira espanhola.

    Isto é: cousas que entendo e respeito porque são tradicionais e muita gente gosta delas… mas das que nem gosto nem quero ter em conta.

    As línguas nunca são lógicas e até as normas têm muito de arbitrário, de convencional. Eu, por exemplo, escrevo o galego à portuguesa. Para mim isto tem mais lógica que escrevê-lo à castelhana. Mas mesmo assim existe sempre uma certa “dissonância cognitiva” entre o que marca a norma, o ideal de língua de cada pessoa e o que finalmente falamos pola vida adiante.

    Por isso, ter sempre na cabeça a simples e rígida norma da língua estudada na escola é para mim o verdadeiro “erro de (galego-)português” ou “error del español”. As complexidades das línguas são tantas que mesmo linguistas e escritores com um vastíssimo conhecimento delas continuam fascinados porque sempre haverá novas curiosidades e mistérios.

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