Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Não há nada» e «espaço de tempo»: a lógica simplista dos paniqueiros da língua

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Sim, há muita gente sempre a reclamar porque encontra erros de português todo o santo dia.

Ora, se há por aí muito erro (ainda temos de falar neste blogue sobre o que é, de facto, um erro de português), a verdade é que os paniqueiros têm tanto medo, mas tanto medo desses erros que os inventam à pressão só para justificar os seus próprios medos.

À força de tanto pânico, alguns desses erros inventados acabam por se transformar em construções desaconselhadas, não vá o diabo tecê-las e o nosso leitor menos informado ficar convencido que não sabemos escrever…

Portanto, já vos falei de «o comer», «LOL» e «fazer a barba».

Mais dois exemplos:

«Não há nada…»

«Espera lá! “Não há nada” tem duas partículas negativas. Logo, é uma dupla negativa e não se pode usar.»

Já tive quem me corrigisse «não há nada» para «há nada» porque «não há nada» seria uma dupla negativa, ou seja, em termos lógicos, seria um frase positiva e eu queria expressar uma frase negativa. Aqui temos um exemplo acabado da visão simplista da língua, como se o funcionamento superficial da sintaxe seguisse a lógica matemática. Isto, levado ao extremo, levar-nos-ia a pedir que o número 2 tivesse duas sílabas, o número 3 tivesse três sílabas — ou outro disparate do género.

A negativa, em português, pode ser indicada por duas partículas: «nãonenhum»; «nãonada», etc. Não se trata duma dupla negativa lógica com valor positivo (como é óbvio). Dizer «não há nada» não quer dizer «há tudo» — e não há ninguém que entenda isto mal.

Se eu disser «não há nada que eu não possa fazer», estou a usar três partículas de negação, mas apenas duas negativas, que o nosso cérebro, de facto, interpreta com valor positivo («posso fazer tudo»).

Ou seja, a negativa gramatical pode expressar-se com uma ou duas partículas negativas e nosso pobre cérebro percebe isto inconscientemente e só no pensamento consciente de quem gosta de complicar é que isto levanta problemas.

«Espaço de tempo»

«Espera lá! “Espaço de tempo” mistura o “espaço” com o “tempo”. Logo, não se pode usar.»

Num dos comentários do artigo anterior, um simpático leitor pergunta-me se o caso de «espaço de tempo» não será diferente destes pânicos sem lógica. Afinal, não devemos misturar as duas categorias.

Quanto a mim (corrijam-me se estiver enganado), estamos perante mais um caso de lógica inventada à pressão só para justificar irritações.

«Tempo» e «espaço» são conceitos diferentes? Claro que são! Mas esse tipo de misturas acontece em qualquer metáfora e em muitas expressões da nossa língua.

O cérebro humano trata o tempo usando conceitos ligados ao espaço e todas as línguas reflectem isto usando expressões espaciais para se referirem ao tempo: «andar para trás no tempo», «andar para a frente» ou «vamos em frente» (referindo-se, uma vez mais, ao tempo). Isto é tão natural que, em muitos casos, nem nos apercebemos que estamos a falar do tempo usando metáforas relacionadas com espaço. Por exemplo, a «linha do tempo» com que explicamos os tempos verbais na escola acaba por ser também uma metáfora espacial.

«Espaço de tempo» é apenas mais uma destas expressões que usa referências espaciais para melhor lidar com a realidade bem difícil que é o tempo.

O livro How the Mind Works, de Steven Pinker, explica isto muito bem: por vezes, usar expressões espaciais é a única forma de conseguirmos falar do tempo naturalmente. O ser humano tem esta tendência cerebral para preferir visualizar o tempo em forma de espaço.

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Não me interpretem mal: percebo o impulso que leva a considerar todas estas construções como erros lógicos. Mas não o são. A língua não é assim tão simples. Podemos estar a pensar de forma perfeitamente lógica e usar estas expressões, que obedecem a mecanismos cerebrais muito complexos e que ainda não compreendemos inteiramente.

Por exemplo, se eu disser: «não há nada que ele não queira», o nosso cérebro lógico percebe que estamos perante duas negativas que se anulam e, assim, a frase significa «ele quer tudo». Mas o nosso cérebro linguístico usa duas partículas na primeira dessas negativas sem qualquer problema. O nosso cérebro é uma grande máquina!…

Por isso, deixem-se de simplismos e apreciem o estranho encanto da nossa língua sem estar sempre de caneta vermelha em riste.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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4 comentários
  • “percebo o impulso que leva a considerar todas estas construções como erros lógicos. Mas não o são”

    Penso que não tem razão. Concordo que não estejamos perante erros de gramática, mas do ponto de vista lógico fará muito mais sentido dizer “intervalo de tempo” do que “espaço de tempo”, que confunde duas grandezas físicas diferentes.

    • Agradeço o comentário!

      Estas construções usam conceitos relacionados com o espaço para falar do tempo, o que se revela uma tendência universal do ser humano. Falamos de linhas de tempo, espaço de tempo, etc., porque é a forma mais natural de falar do tempo, que não se vê.

      Por isso, não devemos impor uma lógica externa à forma como a língua funciona. As expressões são claríssimas e seguem essa tendência universal do ser humano.

      Se fôssemos por aí, teríamos de evitar expressões como: “vamos andar para a frente” (em relação ao tempo); “ocupa-me muito tempo” (também vai beber ao tempo visto como espaço) e por aí fora.

      Ou seja, a linguagem humana usa metáforas em muitos casos, metáforas essas que se tornam, por vezes, parte do próprio funcionamento da língua. Usar o espaço como metáfora do tempo é algo que acontece em muitíssimas línguas e é uma boa forma de falar claramente do tempo.

      Claro que, se numa frase em particular, a construção levar a alguma confusão, aí sim convém não a usar. O mesmo acontece com qualquer outra expressão da língua.

      Mesmo que não concorde, espero que continue a vir a este canto 🙂

  • Marco 🙂 , o comentário será quase “off topic”, mas adoro a expressão “paniqueiros”. Vivendo eu numa aldeia onde a emigração desde os anos 70 tem marcado todas as famílias, assisto (com muito gozo, diga-se de passagem) à tentativa de inserção de novos vocábulos trazidos do francês e do inglês ou ao aportuguesamento de outros tantos. E garanto-lhe, é quase necessário um dicionário para perceber esta gente engraçada.

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