Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Por que razão o chinês é tão simples (e o inglês também)?

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Por esta altura, deve estar o incrédulo leitor deste blogue a pensar: o que terá ele fumado? O chinês, simples? Em que mundo?

Ora, já lá chegaremos: ainda hão-de perceber porque digo que o chinês é simples e iremos descer tão fundo pelo mundo das línguas que ainda vos terei de explicar por que razão, afinal, não é assim tão simples.

Isto das línguas é muito mais interessante do que se diz — e há tanta coisa que não se sabe por aí e é delicioso.

Leiam, leiam (se tiverem tempo, claro está).


A doce simplicidade dos verbos chineses

Ora bem, estava eu a conversar com o meu irmão Diogo, que vive em Inglaterra mas andou por cá a semana passada, quando ele me faz a tal pergunta: por que razão o chinês é tão simples?

Deixem-me explicar-vos donde veio esta pergunta estranha.

Ele é programador e uma daquelas mentes que não pára e está sempre a pensar no que há-de aprender a seguir.

Ora, uma das coisas que decidiu aprender foi o sempre tão fácil chinês.

E a verdade é que lá anda a aprender.

Ora, o que ele descobriu foi isso: o chinês não tem muitas das manias gramaticais de outras línguas — não há formas gramaticais espalhadas em tabelas de conjugação imensas, com muitas irregularidades e excepções, não há formas diferentes para o passado e para o futuro, e tudo isso.

O básico da língua chinesa é mais fácil de aprender do que muitas das outras línguas do mundo — só que, claro está, temos a distância e o sistema de escrita a desajudar…

Foi daí que veio a pergunta. Ele percebe de imensa coisa e eu lá lhe faço muitas perguntas. Como, entre os dois, sou eu o mais inclinado para a linguística (não sei se se nota muito), ele decidiu perguntar-me e tentar perceber donde vem tal simplicidade.

Falei-lhe dum livro que responde à pergunta (já vos digo qual é) e expliquei-lhe, em traços largos, por que razão algumas línguas muito importantes parecem mais simples do que outras. E, claro, dei-lhe o exemplo do inglês.

O estranho caso dos verbos com mais de um milhão de formas

Das nossas línguas mais próximas, há uma outra que se destaca por uma relativa simplicidade gramatical — o inglês. Convém sublinhar a vermelho o relativa.  Não, o inglês não é simples. É extraordinariamente complexo, como todas as línguas dos homens. Mas, como qualquer um de nós reparou na escola, faltam-lhe alguns penduricalhos gramaticais de outras línguas: nada de casos (como o alemão ou o latim), poucos traços de género gramatical (como a nossa distinção entre um «arbusto» no masculino e uma «árvore» no feminino) e os verbos têm só umas quatro ou cinco formas (comparemos com as nossas dezenas…).

A maior parte das línguas tendem a ser muito mais complexas. Temos as nossas línguas latinas com géneros e formas verbais sem fim. Temos, depois, muitos casos ainda mais extremos: o navajo, que só tem verbos irregulares, e o archi, falado no Cáucaso russo, que consegue ter 1 502 829 formas para cada verbo.

Sim: mais de um milhão e meio de formas por verbo.

E as coitadas das crianças aprendem aquilo tudo, sem pestanejar.

Mas, perguntar-me-á o intrigado leitor, como é que eu sei isto?

Não, não andei a perder tempo a aprender línguas de Cáucaso. Mas andei a ler bons livros de linguística, que são muito mais interessantes do que se pensa.

MCWHORTERJohn McWhorter é um interessantíssimo linguista, que escreveu livros como Our Magnificent Bastard Tongue: The Untold History of English (ainda não li) e o excelente What Language Is (and What It Isn’t and What It Could be).

Este último livro, então, devia ser obrigatório para todos os inventores de erros e especialistas instantâneos no que toca às línguas. Explica muito bem as ideias erradas que temos sobre as nossas línguas — e dá-nos uma visão tremendamente mais interessante do que é a linguagem humana do que todos os mitos que circulam por aí.

Fiquei, assim, a saber que algumas línguas passam por períodos de simplificação abrupta.

Quando é que isso acontece?

Neste caso: um grande número de adultos tem de aprender a língua em questão, muitas vezes porque a sua terra foi invadida pelos falantes dessa língua — ou quando um grande número de invasores decide aprender a língua dos invadidos. Também é preciso que não existam muitas escolas a enfiar regras em catadupa pela goela dos invadidos (ou dos invasores) abaixo.

Ou seja, as línguas simplificam-se quando são aprendidas por muitos adultos. Isto porque o nosso cérebro apresenta uma maravilhosa capacidade para aprender qualquer língua, por mais complexa que seja, mas essa capacidade atrofia aí por volta dos 15 anos (depende da pessoa, claro está).

Comecemos pelo inglês: os imensos invasores nórdicos (vulgo, víquingues) que chegaram à Grã-Bretanha nos finais do primeiro milénio encontraram uma língua anglo-saxónica muito complexa. Sabendo que a escrita não reflecte o que se diz, podemos entrever alguma dessa complexidade no início dum velho e conhecido poema:

Hwæt! wē Gār-Dena      in geār-dagum
þēod-cyninga      þrym gefrūnon,
hū þā æðelingas      ellen fremedon.
Oft Scyld Scēfing      sceaðena þrēatum
monegum mǣgðum      meodo-setla oftēah.

 

(Quem aprendeu literatura inglesa deve saber de que obra vêm estes versos… Quem não aprendeu, pode começar por aqui.)

Ora, os víquingues vieram para ficar e decidiram aprender inglês. Afinal, também era uma língua germânica e sempre dava jeito saber falar o que as populações daquela ilha falavam. Deram ao inglês umas quantas palavras importantes («they», por exemplo) e arrumaram a língua à força de o aprender fora das escolas que não existiam.

Como entretanto chegaram os normandos e impuseram o seu francês como língua oficial, o inglês viu-se livre para absorver todas as mudanças sem imposição de qualquer norma — e, assim, mais tarde, quando ressurgiu como língua do Estado, já era uma língua muito diferente, mas mesmo muito diferente. E, diga-se, limpa de géneros, casos e outras manias.

McWhorter dá outros exemplos, entre eles o persa. O persa e o afegão são línguas com uma origem comum: o persa antigo. No entanto, o persa, como foi língua de um império e foi aprendida à força por imensa gente, apresenta uma regularidade gramatical invejável, ao contrário do complicado afegão (e de outras línguas do grupo iraniano: o curdo, por exemplo).

Vemos, ao comparar o persa com o afegão, e quase como que numa experiência laboratorial, este efeito de simplificação através da aprendizagem por parte de adultos. É uma espécie de martelada persa.

Mas há vantagens em falar uma língua complexa?

Bem, diga-se que as línguas não se dividem entre simples e complexas — há um espectro que vai de línguas tão complexas como o archi até línguas tão simples como o indonésio coloquial, que parece ser a língua mais simples que McWhorter encontrou — pelos vistos, já sofreu duas «marteladas persas» durante a sua história. Ali mais encostado ao indonésio do que ao archi, encontramos o inglês e o chinês. O português e as outras línguas latinas faladas na Europa andam a pender para o lado do complicado, já que a última «martelada persa» foi há uns 1500 anos.

Agora, um aviso: todas estas línguas servem para exprimir toda a experiência humana e todas podem importar qualquer palavra e podem ser aprendidas por qualquer criança — o archi não é melhor do que o inglês e o inglês não é melhor do que indonésio. A simplicidade também não é intrinsecamente melhor do que a complexidade imensa — embora traga vantagens: é mais fácil para um adulto aprender indonésio do que archi, claro está.

O que despenteia as nossas línguas? Os séculos…

Diga-se ainda isto: as línguas, como explica McWhorter de forma muito agradável, complicam-se naturalmente. As estranhesas e irregularidades vão-se colando à língua em cada geração, que aprende os hábitos dos pais tal como os encontra — ou seja, as línguas vão ficando despenteadas ou amarrotadas, como quiserem.

Podemos fazer alguma coisa perante isto?

Nem por isso.

A única maneira de simplificar uma língua à força é ensiná-la a muitos adultos ao mesmo tempo sem lhes ensinar regras. Se uma língua for transmitida a crianças (como são todas as línguas vivas), as crianças vão aprender as complexidades dessa língua, por mais absurdas e intrincadas que sejam.

Reparem: o inglês simplificou os casos do anglo-saxão, mas, mais tarde, veio a arranjar não sei quantas vogais que a velha língua não tinha — para já não falar da ortografia, que se tornou um caos, cheia de restos de velhas regras e algumas inovações. Nada que nos impeça de a aprender e usar.

O chinês também parece ter passado por alguma fase de simplificação, mas já se anda a complicar há muito tempo: não têm género, mas têm classes de substantivos — só conta objectos usando umas partículas estranhas que se relacionam com alguma característica desses objectos.

Sem aprofundar muito a questão, posso dizer-vos que, tal como nós dizemos «três peças de frutas», os chineses têm de dizer algo como «três planos de mesa» para «três mesas»; «quatro objectos compridos de lápis» para «três lápis» e por aí fora — isto para todos os objectos.

Atirei com esta característica do chinês ao meu irmão. Ele lá me disse que, sim, isso é complicado, mas um estrangeiro pode usar uma palavra genérica para tudo isto — no entanto, vai sempre soar estranho aos ouvidos chineses.

É um pouco como o inglês que aprende português e diz «dois árvores» ou «uma banco» — nós percebemos, mas não consideramos correcto. Para quem está a começar, pode preocupar-se um pouco menos com estas questões; mas qualquer criança aprende sem dificuldades tudo o que uma língua tem.

É por isso que mesmo línguas que se simplificaram, como o inglês ou o chinês, se tornam muito complexas com o passar dos séculos. Uma gramática descritiva de qualquer língua tem sempre centenas e centenas de páginas — e, mesmo assim, deixam sempre escapar muitas coisas.

Então e o português?

Curiosamente, o espanhol e o português também terão passado por estes mecanismos de simplificação ao serem aprendidos por muitos adultos na altura da expansão pelas Américas. Não estou a falar dos colonos que vieram da Europa, mas dos nativos americanos e dos escravos que fomos buscar a outros continentes. Todos estes aprenderam o português e o espanhol à força, sem aulas, e arrumaram-lhes os recantos e cavernas.

No entanto, essa simplicidade estará escondida, ainda hoje, debaixo de toda a tralha antiga, que ainda faz parte das normas de cada uma destas línguas, tal como ensinadas na escola. Por isso mesmo, existe hoje uma muito maior diferença entre o português-padrão do Brasil e a língua tal como é falada por muitos brasileiros — língua da rua essa que nos surpreende quase sempre e, nalguns casos, até é capaz de nos tirar o tapete debaixo dos pés, tão diferente é ela do pai português.

Podemos ver o mesmo no crioulo cabo-verdiano. Há uma simplificação e arrumação das regras da língua, tudo à força da martelada que é a aprendizagem de uma língua por muitos adultos.

Deixem-me agora provocar um pouco: se alguém quer um português lógico, enxuto, com menos irregularidades, pode procurá-lo em Cabo Verde. A novíssima língua que por lá se fala terá muitas regras e uma gramática muito complexa, mas limpou alguma da confusão deixada por séculos e séculos de complicação, desde que uma velha população do noroeste da Península aprendeu a língua dos romanos e lhe aplicou uma boa e certeira martelada persa.

Nós, no fundo, falamos um latim martelado. Quando os romanos espalharam o latim pelo Império, as populações aprenderam-no sem ir à escola. Assim, deixaram de lado os casos e mais umas quantas coisas que não serviam de muito. Que cada zona o tenha feito de forma diferente explica, em parte, as diferenças entre as línguas latinas. No fundo, são formas diferentes de arrumar o latim.


Bem, isto já vai longo. Tudo começou com uma pergunta do meu irmão, ali no café da Fnac do Vasco da Gama, e acabou no latim antigo, a ser simplificado por esse Império fora. E ainda fomos à Pérsia, à China, à Rússia — e, se não estou enganado, à Indonésia.

O que querem? Acho tudo isto interessantíssimo e não me canso de passear pelo mundo, com esta desculpa saborosa de perceber melhor a linguagem do estranho animal que é o ser humano.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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10 comentários
  • Excelente artigo, Marco! Gosto imenso dos temas que aborda e também do seu estilo (nomeadamente as pontuações de humor). Fiquei curiosa acerca dos livros que mencionou 🙂

  • 1. Aprecio os seus artigos, apesar de não ter feito a 4. classe.
    2. Vinha apresentar algumas dúvidas.
    – Qual a origem do termo “chumbar” para dizer reprovar. Usualmente dizia-se apanhar uma raposa, eheheh.
    – Não gosto da confusão do uso de “desertificação” para dizer “despovoamento”.
    – Para um fenómeno geológico “marmoto” há no mundo (estarei a axagerar?) dois termos, este e o japonês”tsunami”. Lá que outros utilizem o termo japonês, tudo bem. Mas nós deveriamos afirmar assim como os espanhóis obiam fazendo.

  • Olá, sou uma leitora nova em seu blogue! Achei muito interessante seus pontos de vista a cada artigo que escreves, e como sou uma brasileira apaixonada pela língua portuguesa, divirto-me muito lendo.
    O chinês com certeza causa uma má impressão de tal modo que pensamos que seja difícil devido a sua complexidade de anagramas, escritas, mas creio eu que seus anagramas não tornam complexa a língua propriamente dita e falada. Gostei de como tu abordaste uma comparação do inglês e o chinês relativo à simplicidade da língua. Claro está que é bem diferente da nossa quando citamos, por exemplo, a diversidade de conjugações hahaha
    O Brasil realmente tem um português coloquial bem divergente do nosso português-padrão, devo admitir haha
    No entanto, não o usamos a ponto de esquecermos completamente o português-padrão. Nós temos um costume bem diferente de usar a língua comparada aos portugueses, hahaha

  • Olá, também sou um novo leitor do seu blog e brasileiro. Encontrei em algum texto no mendium e desde então assinei sua newsletter e acompanho todos os textos. Sou formado em letras/inglês e me especializei em linguística e literatura. No entanto, fiquei desmotivado por algum tempo, mas em seus textos eu encontrei um ânimo que acendeu novamente o fogo pelos estudos da língua. Obrigado imensamente por isto. Há, gostei da indicação do John McWhorter, já irei procurar,

    “‘And if death does take me, send the hammered/ Mail of my armor to Higlac, return/ The inheritance I had from Hrethel, and he/ From Wayland. Fate will unwind as it must!'”

    • Igor: muito obrigado pelas suas palavras! Fico muito contente e, se este blogue não servir para mais nada, já servir para isto… Espero que continue a gostar!

  • Se nom me trabuco, no Brasil simplificárom as conjugações. Nós temos 6 pessoas, mentres que no Brasil só têm 4. Este fenómeno dá-se em toda a América Latina (tanto a lusófona como a hispanófona).

    • Pois, continua nas gramáticas mas o tu e o vós está a desaparecer.
      No Brasil o seu uso é dialetal restrito a muito poucos lugares.
      Já em Portugal as formas com “vós” são também muito pouco ou um quase nada utilizadas no dia a dia (na norma padrão).

      Eu amo
      tu AMAS
      você/ ele/ela ama
      nós amamos
      vós AMAIS (gz também AMADES)
      vocês/ eles amam

  • Descobri seus textos quase que por acaso e estou me deliciando com eles. Recebo os e-mails da ncultura e os leio imediatamente (vantagens de ser aposentado). Obrigado!

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