Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Três passos para escrever melhor em português

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Antes de mais, uma advertência: se acha possível escrever bem seguindo uma receita qualquer, ainda por cima em três míseros passos, pode ir tirar o cavalo da chuva. Depois de ler este pobre artigo não vai ficar a saber escrever bem — mas talvez consiga escrever um pouco melhor.

Gostava ainda de avisar os incautos que querem escrever literatura: ninguém aprende a escrever romances em três, quatro ou trezentos passos. Este humilde texto quer apenas ajudar a escrever textos que andam mais ou menos longe da ficção: um artigo de blogue, um e-mail, uma carta, talvez até um relatório qualquer. Nada mais, nada menos. (Se o seu objectivo for a literatura, aconselho-o vivamente a ir a correr comprar um livrinho de Mário de Carvalho que dá pelo nome de Quem disser o contrário é porque tem razão.)

Agora, repare: cada vez escrevemos mais — passamos os dias a escrever por tudo e por nada. Por isso, esta ideia de tentar escrever de forma um pouco mais clara e convincente é bem mais importante do que parece à primeira vista. Se o meu caríssimo leitor não souber escrever bem, vai perder muito tempo, arranjar muitos conflitos, trabalhar muito pior.

Mas como saber se escrevemos bem ou não? Ora, eu não sei se escrevo bem: mas tento melhorar todos os dias. É isso que proponho.

Comecemos.

1. Ler (e pensar)

O primeiro passo é coisa para demorar anos. Talvez décadas. Mas, enfim, desde que se comece, podemos avançar em paz para os dois passos seguintes.

Então aqui vai: se quer escrever melhor, convém ler mesmo muito. E ler com atenção. Ler muitas coisas. E não parar de ler.

Dirão alguns: ora, isso todos dizem! Exacto: todos dizem, porque é verdade. Os clichés nem sempre são mentira.

Já será um pouco menos habitual avisar que, para escrever melhor, convém pensar melhor. É bem difícil, mas é essencial: para que serve escrever, se o que escrevemos for um disparate do princípio ao fim?

Diga-se de passagem que mais vale um disparate bem escrito do que um disparate que, ainda por cima, maltrata a língua e a nossa paciência. Ainda assim, convém tentar dizer menos disparates, por mais bem escritos que estejam.

Se não tiver paciência para pensar antes de escrever, bem, atreva-se a escrever sem pensar e, depois, rasgue o que houver a rasgar.

2. Escrever para alguém em particular

Portanto: começamos por ler muito e, quando temos alguma coisa para dizer, pensamos bem antes de pôr mãos à obra — ou melhor, dedos no teclado.

Temos então a folha em branco ou o cursor do Word a piscar.

O terror. O medo. A imensa vontade de não escrever nada.

Como ultrapassar isto?

Há várias técnicas e teses imensas sobre o assunto.

Para já, uma ideia: pode começar por pensar numa boa maneira de dizer o que quer dizer a uma pessoa em particular.

Quando digo uma pessoa em particular, estou mesmo a pensar numa pessoa que conheça: um amigo, um conhecido, um familiar. Convém, claro, que essa pessoa se enquadre no tipo de leitor a que quer chegar. Por exemplo, se está a escrever para professores, pense num professor seu amigo. Se está a escrever para os portugueses de 30 anos, pense num português de 30 anos que conheça — e escreva para esse trintão desprevenido.

Isto é um truque, uma forma de desemperrar a escrita — e é um truque que estou a levar tão a sério que até estou a dirigir-me a um leitor em particular, que não digo quem é. (Como essa pessoa que tenho na cabeça é minha amiga, deveria a bem da verdade tratá-la por tu, mas não exageremos na dose.)

Se fizer isto que digo, torna-se mais fácil saber que vocabulário usar, como dar a volta ao texto, como convencer ou informar ou divertir. Terá um leitor na cabeça com quem pode fingir que está a conversar.

Escrever é conversar às cegas: é uma conversa em que não sabemos o que a outra pessoa está a achar do que dizemos. Por isso, se conseguirmos fingir para nós próprios que estamos a conversar, tudo correrá melhor.

Se fizermos isto, podemos contar histórias, falar directamente ao leitor, o que nos ajuda a nós a escrever com menos entraves — e, o que é mais importante, ajuda o leitor a perceber melhor o que queremos dizer.

3. Testar o texto

O que quero dizer com testar o texto? Para começar, quem escreve tem de ler o texto no fim. Experimente ler o que escreve em voz alta, por exemplo. (Tenha em conta a necessidade de não dar parte de maluco. Resguarde-se numa sala vazia ou mesmo na casa-de-banho.)

Verá como muitas frases que pareciam muito bem escritas se tornam, de repente, um labirinto absurdo donde só quer saber como se sai. Volte a escrever a tal frase enovelada. Escreva melhor. Deite fora o texto, se vir que dali não há nada que se salve.

Depois, se houver tempo e o texto for importante, teste-o mostrando a outra pessoa. Mais uma vez, se a sua cobaia for parte dos leitores a quem gostaria de chegar, tanto melhor. Mas o importante é mesmo mostrar a alguém: essa pessoa pode dizer-lhe onde estão os pontos que a si parecem claros como a água mas que, para os restantes mortais, não fazem qualquer sentido.

Depois, no final, volte a ler. Se for preciso, escreva de novo. Depois, escreva mais, sem desistir. Acima de tudo, leia mais.

Não posso garantir — mas, se repetir várias vezes esta receita improvisada, é bem provável que acabe a escrever melhor.

Este artigo foi publicado, numa versão revista,
no livro Doze Segredos da Língua Portuguesa.
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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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19 comentários
  • Escrever bem dificil é mas, com vontade e boa fortuna, o resultado bom vai ser. Que a força esteja convosco.

  • Bom artigo ainda que curto. Tenho também uma dúvida que gostaria que me esclarecesse . Quando andei a estudar, escrevia- se p.e. : ” ele foi morto”. Agora vejo mesmo em livros ” ele foi matado “. Este é só um dos exemplos das várias palavras/ frases em que o tempo verbal é escrito deste modo. Um comentário , não reli o seu artigo, mas tenho quase a certeza que não adoptou o novo acordo ortográfico. Ainda bem . Já agora, peço-lhe que corrija os meus eventuais erros. Melhores cumprimentos

    • A regra é simples: com os auxiliares «ser» e «estar» (e com os restantes verbos copulativos – «ficar», «parecer», «permanecer» e «continuar»), usa-se o particípio passado irregular («morto»); com os auxiliares «ter» e «haver», usa-se a forma regular do particípio, que é a que termina em -ado ou -ido («matado», «morrido»). Obviamente, isto só se aplica aos verbos com duas formas de particípio.
      No caso de «morto», esta é a forma irregular do particípio tanto de «morrer» como de «matar». Assim, ele foi/está morto, mas dir-se-á que tinha/havia morrido, e o assassino tinha-o/havia-o matado.
      Espero ter esclarecido a sua dúvida!

    • “Temos então a folha em branco ou o curso do Word a piscar”
      Cursor?
      Só li até aqui, mas vou ler o resto.

  • Confesso que só tirei a quarta classe, mas isso aconteceu porque tivemos uma ditadura de Salazar e Caetano que dourou cerca quarenta anos! E como (alguns) sabem, nessa altura quem tinha acesso aos estudos/cultura, eram os filhos dos grandes empresários, e de um pequeno grupo de agricultores, de médicos, engenheiros, advogados, e de alguns funcionários públicos!

    • Sim, claro, ter «só a quarta classe» não será, certamente, por opção própria. Eram outros tempos, em que o acesso à escolaridade não era para todos.

    • Discordo redondamente com o binómio estudos/Cultura.
      Também eu só tenho a ” 4.a Classe ” mas, embora não tivesse acesso aos liceus ou universidades, o acesso aos livros nunca me foi negado.
      Não confundir estudos com cultura…

  • Gostei deste artigo. Hei-de escrever muito bem, com certeza. … Em meio ano vinte e cinco livros lidos… Embora o “meu” acordo ortográfico esteja já muito misturado com esta coisa dos computadores e dos seus dicionários. Acho que já serei uma “mista”, embora permaneça fiel aos pa(c)tos e actos…

  • Boa-tarde
    Comecei ontem a ler os vossos textos e vou ser um leitor interessado mas de momento tenho uma questão que gostaria de colocar: vivo em Côja concelho de Arganil e toda a vida (tenho67anos) o nome da vila teve acento circunflexo; de há um tempo para cá apareceram uns entendidos dizendo que porque é uma palavra grave não deve levar acento. É uma palavra grave apenas ou é um nome próprio e por isso deve ter acento.
    Gostava de ter uma resposta convincente.
    Obrigado
    Amândio Neves

  • Boa noite,

    Fiquei há pouco mais de uma hora a conhecer o seu site e estou a descobri-lo aos poucos, inclusive já fui espreitar o site da Eurologos, onde também encontrei informação que me interessa.
    Gostava de saber a sua opinião sobre um post que publiquei no Facebook. Transcrevo-o tal como o escrevi, ainda que o tom não seja o mais adequado — parece até provocatório, uma vez que reparei que tem “professor na FCSH”, mas não tem essa intenção. Gostava mesmo de saber o que pensa, porque saberá fundamentá-lo com uma outra consistência.
    “Professor DA Universidade de Cambridge, investigadora DA Universidade de Oxford and so on and on…
    Só porque em inglês é AT, não significa que passemos a dizer “em” (“na” e “no”). Sim, eu sei que a língua é um organismo vivo e não há nada de mal em dizer que alguém é “investigador na Universidade de Cambridge”, mas a subserviência ao inglês, assim, sem mais, e de uma forma tão unânime, soa-me àquela coisa chamada hipercorrecção tão bem retratada pelo Mário de Carvalho.
    https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/a-proposito-de-erros/706”

    (Queria ter comunicado por email mas não encontrei forma de o fazer)
    Obrigada e cumprimentos

  • Gostei muito de tudo o que li neste blog, mas agora sinto que fiquei mais leitor que escritor (penso que corro menos riscos). Talvez me faça falta ler mais.

  • Marco,

    A receita do candidato a escritor ler desalmadamente pode cansá-lo de tal forma que o desgraçado desista de ser escriba antes de ser mais um devorador de florestas de papel.

    Diria que mais importante do que ler torrentes de palavras desbragadas e que martelam a cabeça é tentar ler livros que não sejam e não venham de penas muito maçudas. É fundamental ler temas ou assuntos que lhe interessam, e sobretudo reflectir, pensar, mastigar, como se estivesse a esticar e a encher a barriga da parte da frente da cabeça.

    Depois devemos aproximar a nossa escrita da nossa fala. Parágrafos curtos como os nossos primeiros passos a sair do cueiros. Com o tempo e a teimosia acabamos por lhe apanhar o jeito.

    Finalmente, e aqui não alinho muito com o Marco, não devemos escrever para ninguém, mas desatarmos a falar em voz alta, ou em pensamento para não assustarmos os futuros leitores, e “transcrever” a ladainha falada ou pensada em simultâneo.

    Valeu?

    Abraço grande a todos.

    Gil Teixeira

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