Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Despoletar» ou «espoletar»? (por Fernando Gomes)

Conheci o Fernando Gomes numa das inúmeras discussões sobre a língua por que passo no Facebook. É sempre muito divertido conversar com ele e aprende-se muito sobre a língua — e não só. Aqui ficam algumas palavras que escreveu sobre a palavra «despoletar», que muitos insistem em considerar o contrário de «espoletar». Fica também a ligação a este artigo de Vasco Graça Moura sobre a mesma palavra, artigo que li por sugestão do Fernando. Ah! Não é a primeira vez que o Fernando aparece neste blogue… 


A espoleta e os seus derivados linguísticos

Uma espoleta é um artefacto de metal ou madeira que determina a inflamação de uma carga explosiva em projécteis ocos. As espoletas podem ser de percussão ou de tempo. No primeiro caso, a explosão ocorre quando o movimento do projéctil é interrompido bruscamente, ou seja, quando choca com algo (algumas granadas de morteiro, por exemplo); no segundo caso, a espoleta é constituída por uma substância explosiva com uma velocidade de combustão definida (geralmente 4 a 6 segundos), que é inflamada no momento do lançamento do projéctil. Estão neste grupo as granadas de mão.

As granadas de mão têm uma cavilha de segurança que trava a alavanca. A cavilha pode ser retirada, e a alavanca continuar presa pela mão que segura a granada. Quando esta é projectada, a alavanca solta-se, destravando o percursor que, por acção de uma mola, percute a espoleta e dá início à combustão. Esta, por intermédio de um detonador, vai provocar a detonação da carga explosiva.

Não há qualquer dúvida de que «espoleta» e palavras derivadas têm origem militar. Quando dei instrução no exército, antes de 1990, uma granada em que a espoleta tinha sido percutida dizia-se «despoletada». Despoletar a granada era dar início ao processo que originaria a detonação.

Algumas notas sobre o assunto:

1. Se «espoletar» significa «pôr espoleta em», refere-se ao fabrico de granadas. É então que a espoleta é colocada. Mas a espoleta, só por si, não dá origem a qualquer deflagração. Quem transporta uma granada transporta-a espoletada (nesta acepção). Logo, não faz sentido usar «espoletar» como sinónimo de «deflagrar».

2. Se «despoletar» é «tirar ou desarmar a espoleta, impedindo a explosão», então é uma operação técnica destinada a inutilizar a granada (apesar de ser mais seguro retirar a carga explosiva e o detonador). Algo que, a ser feito, será raro, não se coadunando com a frequência do termo na linguagem operacional militar.

3. «Espoletar» nunca fez parte da linguagem militar. Foi dicionarizado para justificar «despoletar» como «des + espoletar».

4. Dicionarizar «espoletar» para justificar «despoletar» é o mesmo que criar «escontar» com o sentido de «aumentar o preço de, acrescentar valor a» para justificar «descontar» (des + escontar).

5. Dizer que «espoletar» é «pôr espoleta em» faz tanto sentido como dizer que «detonadorar» ou «detonadorizar» é «colocar detonador em». Se não há termo para a colocação do detonador (ou de outros componentes) numa granada, porque haveria para a colocação da espoleta?

6. Aplicar o prefixo «des» a «espoletar» deveria originar «desespoletar», tal como em «esperar/desesperar», «estabilizar/desestabilizar», «estimar/desestimar», «escolarizar/desescolarizar».

7. Temos uma palavra, «despoletar», que está dicionarizada com um sentido e o seu contrário, e outra, «espoletar», com uma definição ilógica e com a mesma acepção de um dos sentidos de «despoletar». Se isto não é uma parvoíce, não sei o que será.

8. Há palavras começadas por «es» em que a anteposição de um «d» (provavelmente por redução de um prefixo «de») não lhes altera o sentido ou apenas lhes confere intensidade: «espedaçar / despedaçar», «escrever / descrever», «esfiar / desfiar», «esmaiar / desmaiar»… Neste cenário, «despoletar» seria apenas uma variação de «espoletar», e esta o mesmo que «armar a espoleta e levar à deflagração do engenho» e não «pôr espoleta em».

9. Com «deflagrar», «desencadear», «ocasionar», «provocar», «originar» à disposição, porquê a insistência em se usar um termo polémico de origem técnico-militar?


Fernando Gomes nasceu em 1966. Gosta de coisas simples que pareçam complexas e vice-versa. Já foi socorrista, taxista, informático, músico, técnico de som, letrista e mais o que já esqueceu… Não sabe o que será amanhã nem quer saber. A sua única ambição é ir ludibriando a morte a cada dia que passa.

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19 comentários
  • Já me tinha interrogado várias vezes acerca deste termo e, na dúvida, enquanto tradutora de profissão, investiguei se estava dicionarizada antes de a escrever. Li a descrição, os ditos sinónimos, e, de facto, empreguei-a. Agradeço o esclarecimento mais pormenorizado, informação deste calibre é sempre útil e bem-vinda. Mas permitam-me ser pouco coerente com o que acabei de dizer. Em termos técnicos e semânticos, reconheço que, havendo outras hipóteses, podemos perfeitamente contornar a questão e usar outra palavra semelhante. Porém, no lado mais subjetivo da questão, não é que eu gosto mesmo da palavra despoletar? Gosto do som e daquilo que transmite, num sentido mais explosivo… Idiossincrasias, portanto! Cada um com as suas manias…

  • Com todo o respeito pelo pertinente trabalho que fizeram tenho de vos dizer que não vejo outra palavra para “retirar a espoleta” que não seja despoletar. Ora quando se tira a espoleta retira-se da granada o fulminante que provocará a ignição da carga explosiva, logo inibe-se a granada. Antes pelo contrário para a fazer explodir, depois de colocada a espoleta – que é o tal fulminante – retira-se a cavilha e, convenientemente, atira-se a granada para longe. Que explodirá. Ora o que me parece que se pretende dizer na integração deste vocábulo no discurso e escrita de hoje é “desencadear”. Durante uns anos, na recruta e mesmo no chamado, e muito bem, terreno de operações, sempre ouvi dizer “retira a cavilha, pá!”, nunca “despoleta, pá!”. Além disso “desencadear” é muito explícito e tem imensa força.

    • José Carlos Oliveira, a espoleta não se retira a não ser para inutilizar a granada, e para a retirar é preciso abrir a granada. Alguém faz isso? Mas mesmo que fizesse, a palavra correcta não seria «desespoletar», considerando que «espoletar» é colocar a espoleta ? Quando diz «depois de colocada a espoleta» está a falar de quê? A espoleta é colocada no fabrico da granada. Quando é transportada, já traz a espoleta preparada. Não é algo que se faça antes de a lançar. Só estou a repetir o que está no texto porque dá mesmo a sensação de que não o leu todo.

      • Caro Fernando Gomes. A espoleta é um “fulminante”, altamente explosiva, que nas deslocações motorizadas e por segurança é transportada separadamente em caixas com serradura, e que na altura do avanço pedestre é enroscada na granada. E mesmo então havia quem o não fizesse de imediato e as colocasse num dos bolsos do camuflado, o que muitas vezes provocava a sua explosão, com sérios danos físicos ou mesmo a morte, em consequência de uma simples queda no terreno. Claro que se se enrosca também se pode desenroscar ou seja, despoletar, embora não me recorde de ter visto alguém fazê-lo. De qualquer forma, insisto, use-se desencadear para significar isso mesmo.

  • Gosto do termo despoletar usado no sentido de desencadear. Li a explicação, mas não me parece errado o uso do termo embora seja de origem militar e lhe contradiga ipsis verbis o sentido. Se existe, e se alguém o achar adequado, tem todo o direito.

    • O artigo não diz que o termo contradiz o sentido que lhe damos. Antes pelo contrário… 😉

      • Exactamente! Por vezes,fico sem saber se fui eu que não percebi (quem não percebeu?) o que foi explicado .

  • Excelente e oportuno artigo que esclarece bem a confusão frequente com a palavra despoletar. Permito-me apenas recomendar a correcção da palavra “percursor” que se relaciona com o acto de fazer um percurso; deve ser substituída por “percussor”.

    • João Coelho, tem toda a razão. Ainda há pouco tempo escrevi acerca do erro de dizer «instrumento de percursão» e agora caí nele por distracção. No melhor piano cai a nota. 🙂

  • Na opinião de alguém como eu que nunca foi militar, passei directamente à reserva, excelente artigo. Sou tradutor e já de há muito que prefiro outros vocábulos atendendo às dúvidas suscitadas por publicações sobre “espoletar/despoletar” .

  • Realmente, eainda que as explicações possam esclarecer o uso mais correto de espoletar e despoletar, e sendo estes vocábulos de origem militar, mais certo será deixá-los para o uso nesse contexto. Quanto a mim, e exceção para o dito contexto, mais seguro será empregar outras palavras como desencandear, etc. . Acima de tudo, agradeço este esclarecimento que pode alimentar ainda mais a discussão, ou não!
    Excelente blog este que sigo com atenção e até reverência. Parabéns ao seu promotor, Marco Neves!

  • Espoleta é armar uma espoleta, uma peça de armas de fogo. Despoletar é dar início a uma acção que pode ser tanto para resolver um conflito, talvez a mais comum, como agravá-lo.

  • Engraçado como nunca colocaria essa questão linguística !! Sempre usei e uso essa palavra sem a questionar. Obrigada por mais uma aprendizagem, mas, como sou do contra (ahahahah!), gosto da palavra; adoro neologismos; sendo a língua um “corpo-vivo”, logo em constante mutação, por que não? E para além disto tudo, há verdadeiramente outras palavras, possivelmente mais corretas a utilizar, contudo, na minha humilde opinião, não têm a “força” de “despoletar”.
    Neste momento, deixaram-me “um peso na consciência” por usá-la erradamente e uma certa frustração porque sei que a evitarei, apesar de tanto dela gostar, por saber que é errada!
    Obrigada.

  • Na nota 4. parece-me que a palavra “descontar” vem de “des + contar” no sentido em que a contar se aumenta o valor e a descontar se diminui. (Mas dá para perceber a ideia à mesma)

    • Ana Wemans, usei esse exemplo um pouco tonto, justamente para mostrar o ridículo da coisa. «Descontar» vem de «des + contar», uma espécie de «contar para trás ou para baixo». 🙂

  • Bem, na tropa ensinaram-se a despoletar o raio da granada, mas eu não era e não sou militar de carreira. Enfim, mas por que estamos a despoletar esta questão quando temo outras palavras que valem o mesmo? Talvez a passagem pela tropa me tenha feito uma lavagem ao cérebro e agora ainda a utilizo, mas sem munições.
    Gostei do artigo, parabéns!

  • Fernando Gomes, nem de propósito! Ainda há pouco, uma pessoa que eu muito estimo, publicou um estado (neste caso pode dizer-se de confusão), no Facebook sobre o “diacho” da palavra, muito em voga na comunicação social, mas tantas vezes com o real significado posto em causa. Gostei da explicação, mas também partilho a ideia que com tantos vocábulos com o mesmo significado postos à disposição, porquê a insistência neste? Pode ser que em breve, tenha o mesmo destino que aquele “na medida em que” que há uns anos, saía da boca de todo o sujeito(a) que falava diante das câmaras da TV ! Cumprimentos.

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