Não sei bem se o meu caríssimo leitor gosta deste dia — pelo menos, enquanto Dia dos Namorados ou de São Valentim. Tudo dependerá da sua tolerância ao kitsch ou a tradições mais ou menos importadas — e também da sua situação actual no que toca a relações pessoais…
Pois bem: mal ou bem, o dia está aí. Assim, lembrei-me de ir procurar a origem da palavra que dá nome a esses símbolos que nos invadem os olhos neste dia (ou pelo menos invadem os olhos de quem gosta de olhar para a publicidade).
Qual a origem de «coração»?
Esta palavrinha tem origem — bastante clara — na palavra latina «cor». No entanto, em muitas línguas ibéricas, este «cor» latino ganhou um sufixo que nos parece um aumentativo: «coração».
A palavra com esta forma («cor»+sufixo) existe na nossa língua e no espanhol — mas também no asturiano, leonês e mirandês (que serão três nomes para a mesma língua), no aragonês — e até no velhinho moçárabe, o latim da área governada pelos muçulmanos ibéricos.
É uma palavra bem ibérica! Com excepções: o basco, que já cá andava muito antes de alguém falar latim por estes lados, chama ao músculo «bihotz». Mas também nas línguas latinas há pelo menos uma excepção: quando chegamos ao catalão encontramos uma forma mais próxima do latim: «cor».
Reparemos que encontramos uma palavra com a mesma forma na nossa expressão «saber de cor» — saber de coração.
A partir daí, temos variações da palavra latina: o «còr» occitano, o «cœur» francês, o «cuore» italiano… — até chegarmos ao romeno «cord». No entanto, temos uma surpresa. A palavra mais comum para «coração», em romeno, não é esse «cord» (que existe), mas sim «inimă». De onde vem esta palavra tão diferente? Da «anima» latina, ou seja, da alma.
E, claro, o coração sempre quis dizer muito mais do que um órgão do corpo. É a alma, a consciência, o amor…
Qual a origem de «amor»?
E é por isso mesmo, por ser o símbolo do amor entre duas pessoas, que o coração aparece tanto neste dia. Pois bem, donde vem a palavra «amor»? Para não variar, vem do latim «amor»…
Ora, já sabemos que o latim não apareceu do nada — esta palavrinha muito importante veio do proto-indo-europeu, em concreto da forma «*amma», que quereria dizer «mãe» (ou «tia») em linguagem de criança. Ou melhor, esta é uma das teorias. Não há certezas — mas, se for verdade, significa que a palavra «amor» terá vindo da relação entre mãe e filho.
Ah, mas o amor que hoje é tema de jantares e prendas e publicidade a rodos não é esse… É outro amor, bem mais físico, mais inconstante, que nos deixa rapidamente o coração a bater só com o olhar.
Pois, sendo assim, vejamos a origem da palavra «desejo»…
Qual a origem de «desejo»?
Pois, lá vamos nós escavar até à origem da palavra. Aqui há também muitas dúvidas — mas uma das hipóteses é esta: a palavra terá vindo de «desidero», cujo «sider» talvez se relacione com «sidus», «constelação» ou «estrela», palavra donde nos apareceu, aliás, a palavra «sideral». Por outro lado, «desejo» também poderá estar relacionado com «desidĭa-», que significava preguiça ou indolência.
Não consigo agora resolver a questão — mas não fica mal dizer que o desejo tem, dentro de si, as estrelas (em certos momentos) e uma boa dose de indolência (acima de tudo se for concretizado).
O desejo tem em si as estrelas. Uma boa frase, talvez de duvidoso rigor etimológico, mas que tem aquela pitada de kitsch tão necessária neste dia. Esta ligação perigosa lembra-me, aliás, um dos factos mais curiosos sobre o nosso mundo: a Terra e tudo o que por cá existe apareceu de materiais deixados no espaço pela explosão das primeiras estrelas. Sim: tudo o vemos é feito de pó de estrelas, incluindo o nosso coração, o nosso cérebro, o nosso corpo enfim — e tudo o que desejamos. Perdoem-me este desenlace sonhador: é do dia!
Falta dizer isto: esta pequena viagem fica dedicada, se o leitor me permitir, à Zélia…
Bravo, Professor!
Caro Marco, lindo percurso. Obrigado.
Parece que o -sid- latino tem mais a ver com “estar sentado” do que com os “astros”. 😉
Viva!
Permita-me fazer uma pergunta sobre um pormenor no texto: em “tudo o vemos é feito de pó de estrelas”, não seria melhor escrever “poeira de estrelas” (apesar de “pó” e “poeira” serem sinónimos), ou é uma questão de preferência? Pergunto isto porque é mais usual ler a segunda palavra em traduções do inglês para o português europeu (por exemplo, “stardust” = “poeira estelar”).
Desde já, obrigado.
Já agora, uma pergunta:
O “saber de cor” (“saber de coração”) é em inglês “to know by heart”. Convergência evolutiva ou cópia (quiçá do francês “savoir par coeur”)?
Simplesmente, sensacional!
Mais uma vez,caro Marco Nerves me deslumbra e diverte com os seus ensinamentos,transmitidos de forma amena e divertida,afora daquele ar empertigado e,por vezes um pouco arrogante,que é apanágio de certos académicos.
Gostei muito especialmente desta sua crónica e fico grato pela dissertação inteligente e profícua que considero para mim uma mais valia.
Muito obrigada por este artigo uma vez mais!
Adorava que um dia dedicasse um às palavras das tribos Galaicas e Lusitanas que sobreviveram à romanização.
Até breve!
Como Basca recién aficionada a leitura do seu blog…primeramente. encantada de conhece-loo(( ao vivo, na palestra da Escola de Línguas em Bilbau e depois pelos artigos do blog tbm) E..agora uma anotação ou pequena correção se me permitir o atrevimento. . En quanto a paravra ” coração” em Basco…só queria dizer que está escreve-se ” bihotz” sem “r” no meio. Com toda a minha melhor intenção, Bigitz- bihotzez( de todo coração). Elena I.
Olá! Muito obrigado pela indicação sobre a palavra basca! 🙂 Vou corrigir! E muito obrigado por me ter ouvido em Bilbau e por visitar o blogue! Espero que volte!
Querido Marco Neves, sinto prazer imensurável sempre ao ler um artigo teu!
Agradeço teu trabalho sempre muito enriquecedor às nossas mentes e corações.
Um grande abraço,
Maria Garcia.
Muito obrigado! Um abraço!